Opinião: Professor Roberto Boaventura analisa a perda da régua e do compasso na educação brasileira
SEM RÉGUA E SEM COMPASSO
Mesmo no auge da ditadura, no álbum Cérebro eletrônico, Gilberto Gil cantou, em “Aquele abraço”, os seguintes versos: “Meu caminho pelo mundo, eu mesmo traço// A Bahia já me deu régua e compasso...”
Mas isso já faz décadas. Foi quando a “erva do capeta” era o maior dos escapes da “juventude transviada”. Foi quando aquilo não impedia ninguém de ficar, “sentado ali, na grama do aterro sob o sol, observando hipócritas, disfarçados, rondando ao redor”, ou só olhando “...estrelas junto à fogueirinha de papel”. Mal se sabia o tanto que ainda se teria de pedir, todos os dias e com muitas lágrimas, “No woman, no cry”.
Fico pensando se hoje, algum compositor sério (espécie em extinção), lançando olhar para a sociedade, teria condições de cantar versos tão incisivos quanto aqueles acima; afinal, conforme aponta o mapa da violência, nosso país é um dos mais agressivos do planeta.
Num doloroso resumo, as mortes de brasileiros com até 19 anos cresceram mais de 370% desde a década dos 80. São 22 jovens assassinados a cada “santo” dia, sem contar mortes no trânsito.
Na Bahia das réguas e dos compassos de Gil e dos demais “doces bárbaros”, os assassinatos de jovens – amarga e barbaramente – aumentaram 580% em apenas uma década (perdida, é claro).
E as explicações? Em geral, caminham pelas veredas da simplicidade; por isso, a maioria diz “que a principal causa de tantas mortes é o envolvimento com as drogas” (em especial com o crack), que retiram a capacidade de um ser humano traçar seu próprio caminho pelo mundo.
Poucos são os críticos radicais (outra espécie em extinção) que afirmam ser essa tragédia (os números de mortes são de países em guerra) uma questão estrutural; afinal, para esse tipo de análise, o cérebro não pode ser eletrônico, tampouco se podem ter paixões partidárias acima da razão. E como se sabe, uma das maiores doenças de muitos da “intelligentzia” (ou “PeTizada”, se preferir) nacional é a “apaixonite partidária aguda”. Aí, pensar fica tão comprometido para um “intelectual” quanto o uso do crack para um “cracolandense”.
Mas se esse problema é estrutural – mesmo vendo muita gente de quase todas as classes portando celulares e sofisticados congêneres –, equivale dizer que nisso estão envolvidas as condições de moradias, transporte, desemprego e/ou de salário mínimo advindo de subempregos, da falida saúde pública, de educação sem qualidade e, por consequência, da “a(bunda)nte” oferta de entretenimento vil, que tem jogado as novas gerações num profundo abismo cultural. É muito pancadão na orelha. São pancadas (muitas literais) sem dó nem piedade nos cérebros dos jovens.
Mas as pancadas são tantas que, segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), 38% dos universitários já não sabem ler e nem escrever plenamente. Logo, não interpretam nem associam informações.
Esse quadro já é resultado do crescimento de “universidades” sem qualidade (em geral, as privadas pagas pelo FIES e ProUni), que já recebem alunos sem régua e sem compasso, advindos dos (des)ensinos básico, fundamental e médio.
Assim, na dita era do conhecimento, muitos brasileiros, sob trevas da ignorância, voam ao futuro “sem lenço e sem documento”; portanto, na contramão daquela “Alegria, alegria” cantada por Caetano Veloso.
Para piorar, o governo (Ministro da Fazenda) declarou que “o investimento em educação (se forem aprovados os 10% do PIB) vai quebrar o Brasil”.
Meus caros, Mário Andrade foi feliz. Ele partiu supondo que apenas “pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são...”
Por Roberto Boaventura da Silva Sá
(Dr. Jornalismo/USP; Prof. Literatura/UFMT)
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